quarta-feira, 17 de agosto de 2011

O “corredor da morte” dos pobres

No dia 7 de agosto/11, a imprensa local publicou uma reportagem sobre a saúde pública, com os títulos “Mortes na fila da UTI” (O Popular, 1ª página) e “A infinita agonia na fila das UTIs” (Ib. p. 3), que nos deixou a todos/as estarrecidos/as. Diz a reportagem: “A crise da falta de UTIs se agrava em Goiânia. São quase 3 pessoas mortas por dia esperando uma vaga. De 1º de julho a 3 de agosto, 94 pessoas morreram na fila por uma UTI nos Cais (Centros de Atendimento Integral à Saúde) ou no Hugo (Hospital de Urgências), em Goiânia” (Ib. 1ª página). 
Em 9 de julho/11 já tinha sido noticiado que 61 pessoas morreram no mês de junho pelo mesmo motivo, uma média então de 2 pessoas por dia (Cf. Fr. Marcos Sassatelli. As mortes do sistema público de saúde: quem vai responder por elas? Diário da Manhã, Opinião Pública, p, 3; www.adital.com.br - 12/07/11; www.correiocidadania.com.br - 14/07/11). De um mês para o outro, a situação piorou e houve um aumento de 54% nas mortes. É como se Goiânia estivesse em permanente estado de guerra. Talvez, nem nesse caso haveria tantas mortes. A fila de espera das UTIs é - podemos dizer - o “corredor da morte” dos pobres, condenados por um “sistema econômico iníquo” (Documento de Aparecida - DA, 385).  Que barbárie!   
Ao ler a reportagem - acima citada - sobre a situação de calamidade em que se encontra a saúde pública, mesmo já tendo publicado 3 artigos sobre o assunto, senti-me impelido a fazer, mais uma vez, algumas reflexões e considerações.                                                                                                                                                                                                Frente a essa realidade perversa, o que mais assusta é o silêncio e a indiferença da sociedade. Aceita-se a situação como natural, como normal. Tomam-se, às vezes, algumas medidas para amenizar a situação (medidas paliativas), mas nunca para resolvê-la definitivamente. A sociedade não se sensibiliza mais, perdeu a capacidade da indignação ética e o interesse pela luta em defesa dos direitos humanos. Parece querer dizer: salve-se quem puder!
Depois da publicação da reportagem, o secretário de Saúde do Município de Goiània, Elias Rassi convocou uma reunião com seus auxiliares para avaliar a questão das UTIs. Em entrevista à imprensa o secretário, embora reconhecendo que a situação das UTIs na capital ainda não é a ideal, afirma: “Nenhum paciente fica sem atendimento” (O Popular, 08/08/11, p. 7). O problema, senhor secretário, não é só o atendimento (qualquer tipo de atendimento para ficar livre da importunação), mas o “atendimento adequado, com qualidade, no tempo certo” (Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde, Art. 3, Parágrafo único). Se o paciente chega num centro de saúde, precisando com urgência de uma vaga na UTI, atender significa encaminhá-lo imediatamente para uma vaga na UTI e não, por exemplo, atender dando um analgésico para aliviar a dor e iludir o paciente, que se encontra no corredor da morte. Isso significa lavar as mãos e é crime de omissão de socorro.
Os secretários de Saúde Elias Rassi (Município de Goiânia) e Antônio Faleiros (Estado de Goiás) - para tentar justificar ou amenizar a situação de carência e abandono em que se encontra a saúde pública - falam de aumento da população e de dificuldades técnicas para estruturar leitos de UTI, para contratar médicos e para comprar equipamentos. Muitas palavras e poucos fatos. A cada dia que passa, a situação piora. O que falta é vontade política. A saúde não é prioridade para os nossos governantes, menos ainda, prioridade absoluta.
Infelizmente, segundo o depoimento dos próprios médicos, os Cais não estão em condições de receber pacientes em situação de urgência e emergência, e encaminhá-los para a UTI. Até o material básico (como luvas, seringas, sabonetes e, sobretudo, medicamentos) é racionado e, muitas vezes, falta (Cf, Ib.).
Diante dessa situação da saúde pública, que é um crime institucionalizado contra a vida do povo, quais as medidas que o Ministério Público Estadual está tomando? Não deveriam o Poder Público Estadual e Municipal serem responsabilizados judicialmente pelas 94 pessoas que - por omissão de socorro e falta de assistência - morreram à míngua no mês de julho/11, e pelas inúmeras outras mortes?
O Código Penal reza: “Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo de vida; ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública: Pena - detenção, de 01 (um) a 6 (seis) meses, ou multa” (Art. 135). “A pena é aumentada de metade, se da omissão resulta lesão corporal de natureza grave, e triplicada, se resulta a morte” (Parágrafo único).
É bom que se diga a verdade: As 94 mortes do mês de julho e muitas outras ocorreram não por falta de vagas nas UTIs, mas por falta de assistência e por omissão de socorro. As vagas nas UTIs só não existem para quem depende da Saúde Pública (os pobres), para quem tem o dinheiro para pagar sempre tem vaga. Será que a vida humana de quem tem dinheiro vale mais do que a vida humana de quem não tem dinheiro?
Do ponto de vista jurídico e, sobretudo, do ponto de vista ético, em casos de urgência e emergência, os hospitais e os centros de saúde - públicos ou privados - são obrigados a socorrer a pessoa doente e a dar a assistência necessária para salvar sua vida, tenha ou não tenha dinheiro, tenha ou não tenha documentos. E, se for necessário, o Estado e o Município são obrigados a encaminhar o paciente para o hospital mais próximo e a arcar com as despesas.
Não adianta fazer malabarismos jurídicos para saber o que se entende por  “omissão de socorro” e como ela se caracteriza. Basta o bom senso e um mínimo de consciência ética.
Será que o Poder Legislativo Estadual e Municipal não poderiam aprovar uma lei que aplique o Código Penal à nossa realidade, que regulamente os casos nos quais não pode haver de forma alguma omissão de socorro, e que obrigue o Estado e o Município a se responsabilizarem em caso de atendimento de urgência e emergência? O que não pode continuar é essa “matança diária e mensal”.
O Estado de Goiás pretende terceirizar (leia-se: privatizar) o Hugo de Goiânia e de Aparecida de Goiânia, como parte da política de desestatização das Unidades Públicas de Saúde, por meio de contrato de gestão (sem licitação) com Organizações Sociais (OSs). Como já disse em outro artigo, no lugar de buscar a privatização da saúde pública, para que empresas particulares (chamadas aqui disfarçadamente de Organizações Sociais) se enriqueçam à custa do dinheiro público e do sofrimento dos pobres, o Poder Público - Federal, Estadual e Municipal - deveria se preocupar em cumprir a Constituição Federal, que reza: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação” (Art. 196).
Reafirmando e explicitando o que diz a Constituição Federal, a Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde - editada pelo Ministério da Saúde em março de 2006 e revista em agosto de 2009 - reza: “Toda pessoa tem direito ao acesso a bens e serviços ordenados e organizados para garantia da promoção, prevenção, proteção, tratamento e recuperação da saúde” (Art. 2). “Toda pessoa tem direito ao tratamento adequado e no tempo certo para resolver o seu problema de saúde” (Art. 3). “É direito da pessoa ter atendimento adequado, com qualidade, no tempo certo e com garantia de continuidade do tratamento” (Parágrafo único).
Diz ainda a Carta: “Toda pessoa tem direito ao atendimento humanizado e acolhedor, realizado por profissionais qualificados, em ambiente limpo, confortável e acessível a todos” (Art. 4). “É direito da pessoa, na rede de serviços de saúde, ter atendimento humanizado, acolhedor, livre de qualquer discriminação, restrição ou negação em virtude de idade, raça, cor, etnia, religião, orientação sexual, identidade de gênero, condições econômicas ou sociais, estado de saúde, de anomalia, patologia ou deficiência” (Parágrafo único). È só uma questão de vontade política.

“Vida em primeiro lugar”! “Pela vida grita a Terra... Por direitos, todos nós!” (Tema e Lema do 17º Grito dos/as Excluídos/as/11, a nível nacional). “Contra a corrupção, a violência e a morte, grita a vida” (Lema do 17º Grito dos/as Excluídos/as/11, a nível regional - GO, destacando a questão do transporte, da saúde e da segurança pública). Concentração na Praça A (das 8 às 9h, do dia 7 de setembro), passando em frente ao Cemitério Santana, e terminando (por volta de meio-dia) na Praça do Trabalhador. Participemos! A presença de todos/as, de cada um/a faz a diferença!
                         Diário da Manhã, Opinião Pública, Goiânia, 17/08/11, p. 6





 Fr. Marcos Sassatelli, Frade dominicano
                                                                        Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Prof. de Filosofia da UFG (aposentado)
Prof. na Pós-Graduação em Direitos Humanos
(Comissão Dominicana Justiça e Paz do Brasil / PUC-GO)
Vigário Episcopal do Vicariato Oeste da Arquidiocese de Goiânia
Administrador Paroquial da Paróquia Nossa Senhora da Terra

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